Urucuia sofreu redução de 31 km³ no volume de água em duas décadas. O problema é mais grave na Bahia, em região de monocultura. Dados são de novo modelo de monitoramento que combina imagens de satélites e inteligência artificial. Redução também ocorreu no aquífero Bauru-Caiuá. Esta é a primeira reportagem de uma série do projeto "Cerrado, berço das águas".
Os aquíferos são vitais para o equilíbrio dos ecossistemas e da existência humana. Se apenas 3% da água na Terra é doce, quase 99% deste volume descongelado está nessas formações geológicas. Apesar da importância, pouco se sabe sobre essas águas que correm sob nossos pés, de maneira quase sempre invisível, e abastecem rios e lagos, principalmente nos períodos secos.
Perfurar poços e monitorá-los são tarefas caras e complexas, sobretudo em países continentais, mas ao mesmo tempo essenciais. As águas subterrâneas representam a fonte primária de consumo para mais de 2 bilhões de pessoas e 25% da agricultura irrigada no planeta, conforme a Unesco.
Um novo modelo, desenvolvido pelo engenheiro-geólogo Clyvihk Camacho, do Serviço Geológico do Brasil (SGB), promete dar uma nova dimensão ao conhecimento sobre as dinâmicas e o estado dos aquíferos com a combinação de dados de satélites da Nasa com ferramentas de inteligência artificial, a fim de identificar a variação do volume dos aquíferos.
O modelo foi validado com os dados dos aquíferos mais monitorados pela Rede Integrada de Monitoramento das Águas Subterrâneas (Rimas), do SGB. Neste processo, Camacho identificou que o Urucuia, no Cerrado, e o Bauru-Caiuá, que abrange o Cerrado e a Mata Atlântica, perderam, respectivamente, 31 km³ e 6 km³ de volume de 2002 a 2021. Os resultados foram publicados no primeiro artigo do projeto, na revista científica Water Resources Research, em agosto de 2023.
No aquífero Urucuia, a irrigação de monoculturas contribuiu para a redução de 31 km3 de volume de 2002 a 2021.
O aquífero Bauru-Caiuá perdeu 6 km³ de água no mesmo período, em uma região de elevado uso para agricultura e abastecimento humano, no oeste de Minas Gerais.
“Desenvolvi esse modelo porque precisamos entender melhor o comportamento da água subterrânea no Brasil ao longo do tempo”, diz Camacho, que é pesquisador em geociências e hidrogeologia do SGB, cujo trabalho é fruto do doutorado em Engenharia Civil na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “O crescimento sustentável de uma nação depende da água e da sabedoria ao usar esse recurso, que não é igualmente distribuído no Brasil.”
No país, 68% dos municípios captam água doce em poços profundos para abastecimento público, segundo o IBGE. Ainda assim, atualmente, o conhecimento das águas brasileiras se fundamenta sobretudo nas superficiais – rios, planícies de inundação, lagos e reservatórios. A Rede Hidrometeorológica Nacional, coordenada pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), possui 13.148 estações fluviométricas, que monitoram a vazão dos rios. Já a Rimas dispõe de 473 poços para monitorar 24 aquíferos sedimentares, que se estendem por 2,84 milhões de km² – um terço do território nacional. Camacho, que integra a equipe da Rimas, considera que a rede de monitoramento é a melhor ferramenta para compreender os aquíferos, mas “o conhecimento hidrogeológico no Brasil precisa avançar”.
Augusto Getirana, pesquisador do Laboratório de Ciências Hidrológicas da Nasa e coautor do artigo, considera que as águas subterrâneas brasileiras permanecem “um recurso desconhecido”. “Bangladesh, um país do tamanho do Ceará, tem mais de 1.200 poços de monitoramento de água subterrânea. A Índia, que é bem menor que o Brasil, tem mais de 20 mil”, compara Getirana, orientador da tese de doutorado de Camacho.
“Esse trabalho demonstra como podemos usar dados de satélite para obter estimativas da variabilidade da água subterrânea onde não temos monitoramento. Mas, é claro, o ideal seria ter poços nesses lugares”, pontua Getirana. Para calibrar o modelo, os cientistas dependem de dados in loco como os produzidos pela Rimas.
A Rede Integrada de Monitoramento das Águas Subterrâneas possui 473 poços de monitoramento, um número baixo comparado a outros países. Bangladesh, por exemplo, que tem o tamanho do Ceará, possui mais de 1.200. O problema é mais acentuado em regiões de difícil acesso, como na Amazônia.
O desafio de monitorar
A Rede Integrada de Monitoramento das Águas Subterrâneas (Rimas) foi criada em 2009 no Serviço Geológico do Brasil (SGB), uma autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia. A rede instalou poços em aquíferos sedimentares situados em áreas de recarga, onde a água da chuva entra e mostra mais rápida e claramente a variação do nível, além de serem regiões mais sensíveis e vulneráveis a pressões externas. Outro critério foi priorizar locais com alta utilização da água subterrânea.
Nos poços da Rimas, um equipamento registra o nível d’água de hora em hora. A cada quatro meses, os técnicos do SGB vão a campo coletar os dados gerados nos poços e calculam as medianas diárias. A rede planeja implementar a telemetria, que permitiria o monitoramento remoto dos poços, em tempo real.
“A água é um bem mineral superimportante, um lastro para qualquer empreendimento – indústria, plantação”, observa a geóloga Daniele Genaro, coordenadora da Rimas. “A rede de monitoramento dá essa lupa para as condições da água – se existe e tem condição de suprir ou não todas as demandas, quando se quer colocar um novo empreendimento. É uma ferramenta essencial para enxergar a água subterrânea ao longo do tempo.”
Os aquíferos com a maior quantidade de poços de monitoramento são o Urucuia (87), o Bauru-Caiuá (71) e o Guarani (41). Segundo Genaro, os novos focos de expansão da rede são o Açu, na divisa do Ceará com o Rio Grande do Norte, e o Parecis, em Mato Grosso e Rondônia, onde há “uma fronteira agrícola que está crescendo bastante agora”.
Genaro considera incorporar o modelo ao Rimas “assim que for possível”, após Camacho concluir seu doutorado. O sistema permitiria, por exemplo, criar estações virtuais, o que reduziria os custos de monitoramento, e preencher lacunas decorrentes de problemas na geração de dados ou em equipamentos. “A pandemia nos impediu de ir a campo e coletar, então podemos gerar esses dados e entender o que aconteceu nesse período, para completar as séries históricas”, acrescenta a geóloga do SGB.
“Eu acho que é o grande futuro. Não substitui a rede de monitoramento física, mas vem para dar saltos muito grandes”, continua Genaro. “É uma ferramenta incrível para melhorar a nossa densidade, com estações virtuais de monitoramento, e, se faltar dado em algum lugar, compensar com a informação dos satélites.”
oço de monitoramento do aquífero Urucuia, no município de Mateiros, em Tocantins. Aquífero é o mais monitorado do Brasil, com 87 poços como esse. Foto: Marcio C. Abreu / Serviço Geológico Brasileiro
Modelo híbrido
O modelo utiliza como base os dados do Experimento de Clima e Recuperação da Gravidade (Grace, na sigla em inglês). Trata-se de um sistema de sensoriamento remoto da Nasa composto por satélites que medem a variação da gravidade da Terra. Desta forma, se obtém as mudanças do armazenamento de água no planeta. Contudo, o Grace não distingue o volume em cada estrato da coluna d’água – superficial, subterrânea, umidade do solo e neve.
Camacho, então, testou diversas ferramentas de inteligência artificial e as combinou em um “modelo híbrido conjunto”, capaz de segregar esses dados e obter apenas a variação da água subterrânea. Por fim, realizou quatro experimentos para analisar a qualidade do sistema, em comparação com uma ferramenta bem consolidada, o Sistema Global de Assimilação de Dados Terrestres (GLDAS, na sigla em inglês), também da Nasa.
Os dois modelos foram rodados com o objetivo de alcançar os mesmos dados dos poços de monitoramento da Rimas – e o modelo desenvolvido por Camacho se saiu melhor em todos os experimentos, conforme demonstrado no artigo. “Vimos que a inteligência artificial pode superar modelos robustos e complexos, a um custo computacional muito menor”, observa Camacho. “De forma geral, a margem de erro fica em torno de 1 centímetro da coluna d’água dentro de um aquífero. Se disser que esse aquífero ganhou 10 centímetros, significa 11 ou 9.”
“Precisamos sistematizar o conhecimento hidrogeológico do Brasil, com monitoramento para todo o território nacional”, defende Camacho. Na visão do pesquisador, a rede poderia dar respostas em eventos climáticos extremos, como a crise hídrica no Sudeste em 2014 e 2015, e entender se as águas subterrâneas, nas condições atuais, supririam as diferentes demandas em um processo de estiagem.
Em 2015, o reservatório de Sobradinho, abastecido pelo Rio São Francisco no norte da Bahia, sofreu a pior seca de sua história. Em períodos de estiagem como esse, o aquífero do Urucuia fornece até 90% da vazão do Velho Chico. Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil.
Fonte: https://ambiental.media/aquifero-no-cerrado-perde-mais-agua-do-que-capacidade-de-reposicao-natural/
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